Renato Fernandes
Autocaleidoscópio
Eu queria me ocupar das pequenas coisas
Levar as crianças à escola
Molhar as plantas já úmidas
Organizar os livros por autor (ou por cor)
Reverenciar o carteiro, o jornaleiro e o porteiro
Entidades benfeitoras de um dia em sépia
Mas me preocupam as próximas eleições
As notícias sobre aquele rapaz esfaqueado
O aumento da arrecadação de impostos
Os rios de dejetos e espuma
Paralisam-me os informes sobre a guerrilha urbana
E as mentiras contadas em igrejas
- Não reclame, você não sabe o que é o sofrimento!
Dizem-me nas mesas sebosas dos bares
Destilo suor trotando pelas ruas
Saltando mendigos, desviando do lixo
Esperando que meu corpo seja inundado
Das essências que deveriam espantar as sombras
Mas que só me tornam um animal sedado
Rumando desconfiado para o abate
- Relaxe, você trabalha demais!
Dizem-me nos divãs sebosos dos consultórios
Aconchego-me calidamente às curvas da cama
Sorvo o chá que me servem
Penso nas plantas úmidas
Nos livros organizados por cor
Mas por debaixo das pálpebras fechadas
O sono se põe em fuga, aterrorizado
- Ore, você deveria acreditar em algo!
Dizem-me nos confessionários sebosos das capelas
Apresentam-me a coroa de Cristo
O sorriso de Buda, o poder dos orixás
Estereótipos mal travestidos do Deus Sol
Que zombam em coro de meu paganismo
Crucificando-me pelo que não fiz
Interessados nos pecados que cometi
Ora, não me tragam versículos declamados em oratórios,
Pois deles criarei blasfêmias impublicáveis
E revelarei ao mundo que o fim não está próximo!
Não me ofereçam ansiolíticos hipnóticos
Pois nem um barril todo de vinho me fará desfalecer
E o torpor restante se converterá em raiva e luta!
Permitam que eu sofra a angústia dos vivos
Dos que não possuem motivos
Dos que vagam alheios às manias nacionais
Dos que não possuem pátria
Dos que não integram grupos
Dos que são esquecidos por não se lembrarem
Ouçam meu lamento em silêncio e respeito
Pois já aceitei mais do que pude
Rádios, televisores e jornais histriônicos
Discursos de ocasião, campanhas de opinião
Vampiros da vontade, encantadores de almas
Desejando que tenhamos (o que quer que seja)
Não me tragam políticos, cientistas ou filósofos
Pois já estou farto de procurar em suas linhas
As entrelinhas do que é genuíno e terno
Quero viver entre os ébrios, os insanos e os insones
Que não suportam o peso da vida, mas estão vivos
Que falham, que erram, que choram, mas estão vivos.
Imagem: Cavaleria (2013), de Alexey Shervashidze-Chachba.