Renato Fernandes
Luiza partiu antes do Natal
Luiza partiu antes do Natal. É especialmente triste que tenha sido assim. Minha avó tinha verdadeira devoção pelas festividades de final de ano. De qualquer forma, não sabíamos ao certo se ela ainda se apercebia de datas, rostos e entornos. Se continuava a se comover com os presépios e luzes piscantes pela cidade. Ou mesmo se ainda rezava ao deus em quem tanto confiou por décadas a fio. Provavelmente, não.
Mas sabemos que ainda reconhecia e estimava o toque e o cuidado, dado que sempre emitia um fiapo de som ou remexia lentamente a cabeça alva de olhos fundos e perdidos quando deitávamos as mãos sobre seus braços cansados. Braços estes que a tantas crianças embalaram, que tanto alimento prepararam, que tanta terra cultivaram. São braços que agora descansam inertes de uma vida toda ajardinando o mundo.
A velhice é ao mesmo tempo a dádiva e o preço que temos que pagar por uma vida plena. Mas o preço parece excessivamente alto quando percebemos que a personalidade, aquilo que nos define como vidas singulares, vai se desvanecendo pelos becos das entranhas cansadas pelo tempo. Luiza era uma habitante da enorme caixa de Schrödinger em que vivem as pessoas desmemoriadas. Ela estava ali, e ao mesmo tempo não estava.
Mas a complexidade da cultura humana está justamente no fato de que, para além de sermos a continuidade biológica de nossos ancestrais, eles também vivem em nós indefinidamente através do conhecimento abstrato compartilhado. Luiza não sabia, mas era botânica. Não sabia, mas era filósofa. Não sabia, mas era chef de cousine. Não sabia, mas era psicóloga, bibliófila, artesã, inventora e muitas coisas mais. Foi pastora de ovelhas, mãe de cinco, avó de dezenas, e nunca ninguém a viu levantar a voz ou expressar desespero por qualquer coisa. Luiza é corresponsável por tudo que considero bom em mim hoje.
Retrospectivamente, creio que ainda tenho muito a aprender contigo, Luiza. Aprender a contemplar a grandiosa beleza e simplicidade das coisas naturais. A humildade dos que se sabem uma parte ínfima, mas ativa, de fenômenos muito maiores do que a vida cotidiana. A devoção dos que creem não só em dogmas imutáveis, mas que confiam e são otimistas. E, principalmente, aprender que a compreensão e aceitação do outro são o elemento básico da civilização. Quanto falta você fará nos dias atuais, Luiza.
Me lembrarei de ti na cadência das cantigas de roda, no sabor do queijo e dos bolinhos, nas páginas de Monteiro Lobato, nas brincadeiras na terra, no aroma do café torrado, nas frutas tiradas diretamente do pomar, nos nomes populares das plantas, nos presépios de Natal, nas caminhadas oníricas pelas matas, no medo de se afogar, no abraço para proteger do estampido dos trovões, no amor pelos animais, nas orações sinceras. Me lembrarei sempre de ti, pois és em mim. Até qualquer dia.